Aos nove anos de idade, meu pai, que era carteiro, surpreendeu-me ao descer de sua bicicleta carregando uma caixa de madeira, dizendo-me que era meu o presente. Trouxe-me um jogo de xadrez, bastante usado, cujas peças eram bem simples, toscas, mas nem por isso destituídas de encanto. Um dos cavalos estava lascado. Em outro, a parte superior não se encaixava na inferior, pois o pino de sustentação encontrava-se gasto. O prazer de ter recebido o presente superava a qualquer eventual defeito que encontrasse.
Empolgado, perguntei-lhe como se jogava aquilo. Pediu que aguardasse, pois se sentia exaurido pelo trabalho e necessitava se recuperar daquele doído período de tempo, da eterna luta pela sobrevivência. Jamais o vi se lamentando.
Passei um longo tempo a observar cada uma das peças, seus poucos detalhes, a sujeira impregnada, os vincos e sulcos que resistiram no desgastado verniz, enfim, permaneci ali indiferente aos demais estímulos, pois sabia que recebera um convite para viajar por um mundo mágico e misterioso. Anteriormente já havia presenciado dois senhores jogando xadrez numa barbearia, serenos, inebriados com o magnético encanto do jogo, que eu sabia ser enigmaticamente fascinante, mas ainda não podia compartilhar desse universo, distante de minha ingênua capacidade de compreensão.
Faltava um “quadrado” para colocar as peças. Apenas depois de algum tempo, descobri que o nome correto é tabuleiro. Por que meu pai não o trouxera? Será que a alma boa que lhe doara as peças esquecera-se do tabuleiro? Ansioso, logo me livrei dessas preocupações circunstanciais e decidi fazer o “quadrado”. Talvez pudesse desenhá-lo na terra ou então procurar uma tábua bem grande, mas essas fórmulas apresentavam algumas dificuldades intransponíveis. Pensei também em pedir ao meu pai para que comprasse uma caríssima folha de cartolina. Sabia da impossibilidade. Iluminado por alguma energia mística, inventei, ou descobri, a melhor forma de criar um tabuleiro. É isso! Cortaria pequenos quadradinhos de papel branco, de folhas do caderno de desenho e colaria, com cola de trigo, esses quadradinhos numa folha de jornal. Assim, a parte escrita, em baixo-relevo, seriam as casas pretas. Em pouco tempo o “quadrado” para o jogo estava pronto. Com uma tesoura delimitei as margens. Orgulhoso, chamei meu pai para ver aquela obra de arte. Olhou para a minha produção estética com um olhar de reprovação e disse – “Dez por dez, acho que não é bem assim”. Com muita paciência e, principalmente com a tesoura, corrigiu o pequeno defeito. Oito por oito, esse era o número certo, mas isso era apenas um desprezível detalhe. Quantas são as correções deste mundo, que não nos levam a nada.
Foi posicionando as peças em seus respectivos lugares, alertando-me que havia uma disposição correta para as mesmas. Ele conhecia superficialmente as regras, porém demonstrava um sutil respeito pelo jogo. Até hoje, tenho a impressão que joguei as primeiras partidas no tabuleiro com a diagonal invertida, mas quantas são as inversões que nos escravizam no quadrado das injustiças e das imponderáveis adversidades desta vida. Faltavam dois peões pretos e um branco. Nenhum dos reis conservara as cruzes, mas nem por isso perderam a majestade. E agora? Como jogar sem as peças que faltavam.
Pacientemente, meu pai foi buscar algumas rolhas de champanhe, que trazia da rua, e com elas esculpiu rapidamente os peões. Aprendi que só improvisa quem não tem. Tingiu dois deles de preto, com extrato de nogueira. Demorou uma eternidade para secar, mas consegui sobreviver. O tempo sempre parece conspirar quando estamos próximos da realização de nossos maiores desejos.
Explicou-me o movimento das peças e tentou me explicar também o que era xeque-mate. Essa última parte não entendi muito bem, mas isso era desnecessário para alguém que não via a hora de se aventurar por aquele fantástico “quadrado”. Certamente não percebia que estava diante de um microcosmo, a vida metaforizada no intrincado mundo dos movimentos, sejam eles lógicos ou incoerentes, onde somos, a cada momento, obrigados a tomar nossas decisões, pressionados pelo cruel “Senhor Tempo”, conscientes de que seja qual for a decisão, sempre haverá um custo e pouco espaço para lamentações. No tabuleiro, em raros momentos experimentamos o poder divinal, enquanto em outros, somos apenas marionetes manipuladas pelos sutis fios de nossas prisões e bloqueios. Passei gradativamente a compreender que jogar xadrez significa ficarmos cara a cara com a nossa verdade, ainda que de mentirinha.
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