Nosso Cantinho O IMPACTO 14.02.2015 – Maurinho Adorno
Do couro, a correia,
e a vida vai passando
O coro do boi era curtido no sal e exposto ao sol, sem produtos químicos até chegar ao ponto ideal para ser bem laminado e transformado em sapatos e bolsas. Na forma mais bruta, com maior espessura, era a matéria prima para fazer solados de sapato, masculinos e femininos, como o faziam os sapateiros Benedito de Oliveira e Joaquim Adorno, os dois mestres nessa arte hoje praticamente inexistente; calçados têm sido produtos descartáveis, a maioria confeccionados com produtos sintéticos.
Os dois sapateiros eram meus amigos. Com o Joaquim, nossa família tinha um parentesco que deveria ser de segundo grau. Fui freguês dos dois. As vezes que eu tinha que ir à sapataria de seu Benedito, na Rua 13 de Maio, para retirar algum sapato da família, era uma expectativa grande: ele sempre deixava a gente olhar pelas lentes de seu enorme binóculo, seu hobby preferido. Da pequena oficina, em frente à Cachaçaria, a gente enxergava dentro do velho Mercado Municipal, dirigido pelo Tango Vaz, construído onde hoje se situa a Brinquedoteca. Rua acima, a visão nos levava até a confluência da Rua 13 de Maio com a Rua Padre Roque.
Como a sapataria do seu Joaquim ficava no caminho de meu trabalho, de vez em quando era parada para um conversa: ele me contava sobre os nossos ancestrais, sempre usando palavras mansas e carinhosas. Não me deixava sair sem ler um jornal, mesmo que fosse velho, e sem tomar uma água fresca, tirada de uma talha de barro e servida numa caneca de alumínio. Nessa semana, eu me lembrei dos dois, com saudade. Eu os vi cortando os solados de sapato com aquelas finas lâminas de folha de serra, e moldando as solas nas chamadas “bigornas de sapateiro”.
As lembranças, quando surgem, desencadeiam outras, e foi assim que me lembrei dos losangos de couro que, costurados por presos, se transformavam em bolas de futebol, na época as chamadas “bolas de capotão”. Para que o couro não ressecasse, elas eram besuntadas com sebo de boi. Eu não tive uma dessas bolas na infância, mas sei disso porque era assim que o Eduardo Posi fazia a manutenção da sua, uma delas usada, com certeza descartada, por muito uso, pelo Mogi Mirim Esporte Clube, dirigido pelo seu avô, o Naquinho Posi.
As nossas bolas do jogo de rua eram de borracha e de tamanho menor, e se fazia uma festa quando o Eduardo chegava à nossa Rua Ministro Cunha Canto – foi marcante quando ele apareceu com um jogo de camisas e distribuiu as onze aos “grandes jogadores”. Era até interessante aquele jogo na rua de terra, de um lado, onze com camisas novas, números nas costas, e de outro, onze jogadores sem camisa. Ganhar dos encamisados era uma festa, mas era difícil de acontecer, pois o Eduardo escalava os melhores jogadores.
O couro foi motivo de um grande susto em minha vida. Numa tarde, ao retornar do trabalho, meu pai chegou à nossa casa com um reio novinho em folha, muito bem trançado com couro cru. Mostrou aos filhos e disse “isso é para quem fizer arte”, e guardou o artefato sobre um guarda-roupa, com uma parte visível, como se fosse para nos intimidar. Acho que foi a semana da maior calmaria em casa. Dava até arrepios de ver o reio. No fim de semana, a geringonça desapareceu. Na segunda-feira, no jantar, minha mãe contou que ele havia comprado para meu tio Benedito usar na condução de seu belo cavalo em sua nova charrete. Meu pai, na cabeceira da mesa, ria muito – ele gostava de pegar peças na família.
O couro para mim é o rei das matérias primas dos instrumentos de percussão: o som forte dos bumbos do Tiro de Guerra e da Banda Marcial do “Monsenhor Nora” eram melodiosos e, ao mesmo tempo, ensurdecedores. Como também ecoava forte o som dos bumbos das famosas escolas de samba de outrora.
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