sábado, 11 de fevereiro de 2012

XADREZ: OS CAMPEÕES SABEM O VALOR DA REPETIÇÃO... (XADREZ - A ARTE DE REPETIR PARA OBTER RESULTADO DIFERENTE...)


Sobre o eterno retorno

Friedrich Nietzsche, um filósofo alemão muito badalado na contemporaneidade, escrevia no final do século XIX mais um de seus escritos bombásticos, A Gaia Ciência. O impacto dessa obra foi tremendo, pois nela o filósofo reforçou posições como a morte de Deus e a moral relativa. Foi também nessa obra que expôs uma de suas ideias mais interessantes, a saber, o eterno retorno.Assim escreveu:

"E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". (NIETZSCHE, Coleção Os Pensadores, p. 208-209)

Pois é... Muito forte, não?! Imagine só, toda a alegria, mas também o sofrimento, de uma vida inteirinha, tudo repetido da mesma forma, sem mudar absolutamente nada. Aquele garfo que praticamente se sentia no estômago, o sacrifício não previsto, o mate gaveta... Tudo, tudinho, eternamente se reproduzindo... Será que jogaríamos melhor se aplicássemos o "eterno retorno" no xadrez? Ou desistiríamos?



A pergunta que me faço é: se perder dói [e tem que doer, porque um mestre me disse que se não nos importamos com a derrota, é porque não nos importamos mais com o jogo] e vencer nos ressuscita, como lidar com o jogo de xadrez em uma perspectiva do tipo "eterno retorno"? O sabor das vitórias compensaria as derrotas?

Tenho uma possível resposta e uma nova redação para o trecho de Nietzsche. [Sim, a cabeça serve para isso, para ousar!] A resposta é que tudo vai depender do tipo de jogador que se é. O xadrez pode melhorar, as pessoas aprendem as regras, estudam, e se tornam grandes mestres. Ou capivaras de primeira linha. Mas a pessoa-jogador, esse ser dotado de algo exclusivo que é SER, esse permanece. Se sou otimista, tendo a valorizar as derrotas como aprendizado. Ao contrário, considero parar de jogar a cada erro cometido, a cada ponto perdido. [E perder dói!]

O fato é que o xadrez pode nos auxiliar a entender alguns meandros profundos do nosso ser, nossa forma de pensar e lidar com os fatos, com a realidade mutante como é. Se perde, se ganha, às vezes se empata e sobrevivemos. Cada partida que jogamos é um segredo que compartilhamos com nós mesmos. Somente nós sabemos o que se pensa, os absurdos que nos vem durante a avaliação de uma posição, os sentimentos, a ansiedade... Podemos até dividir com alguém, tentar colocar em palavras um turbilhão de processos cognitivos que ocorrem simultaneamente durante uma partida. Ninguém chegará perto de teu segredo além de você.

Nova redação:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: Esta partida, assim como tu jogaste agora e como a jogaste, terás de jogá-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua partida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta estrutura de peões e este final, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!

Observação final: este era para ser um texto divertido de retorno - não eterno - ao blog.



Pressa, perfeição e outras coisas mais...


"A pressa é inimiga da perfeição."
(sabedoria popular, autoria sem autor)

Para falar de pressa é preciso falar de tempo. Não do tempo, no sentido determinado, daquele tempo que não volta mais, o tempo do cobra. Não. É de tempo. Hoje e atualmente o tempo está acelerado. Você acorda e, quando se dá conta, está indo dormir. Ontem era Natal e agora já é Dia dos Namorados. Dia do Enxadrista também. A sensação é que o tempo está com pressa.

O sentido da repetição

O tema me parece muito oportuno para cada fim e começo de outro ano, estamos no início do fim, e muito em breve no início do começo. Essa sucessão de começos e términos sugere um ciclo, algo que se movimenta em torno de um sentido em grande medida construído a partir da repetição.

Todos os anos se repetem, isso é fato. Há um texto muito divulgado de Carlos Drummons de Andrade que aborda a questão do calendário, muito em voga nesses tempos de certa nostalgia misturada com comilança. Diz o seguinte:

“Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança 
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano
se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra
vez com outro número e outra vontade de acreditar
que daqui para adiante vai ser diferente...”


Mas vejam, há um detalhe importante. Apesar da repetição, uma das idéias presentes neste texto de Drummond é a possibilidade da diferenciação, o que aparentemente – percebam, somente nas aparências -, parece contradizer a idéia do repetir. E é nisto, justamente neste pequeno grande detalhe que eu vejo a exploração – a extrapolação, se assim preferir-, de uma característica do jogo de xadrez.

Ao pensarmos em uma partida de xadrez, estaria descrevendo o óbvio ululante se falasse das regras que compõem o jogo. Este é o elemento que, sem dúvidas, mais se repete. Não direi que se repete sempre porque existem os erros, em que a regra pode ser desafiada ou pela ignorância ou pela desatenção – ambas características humanas, demasiada humanas.
O fato é que a regra exige, por definição, a repetição para fazer sentido; e o xadrez precisa das regras – também por definição -para que se torne um jogo. Logo...

Jogar uma partida de xadrez é repetir, repetir, repetir tantas vezes for necessário uma tábula de leis. E não só isso. O próprio aprimoramento no jogo relaciona-se com a compreensão mais apurada do sentido da regra, em outras palavras, em como repetir cada vez melhor, cada vez mais preciso. Repetir é preciso.

Além disso, a repetição é uma das muitas ferramentas que dispomos para estudos enxadrísticos. Ao montarmos uma, duas, dez vezes um determinado diagrama ou reproduzirmos uma sequência de uma variante, lá está ela, a repetição, nos auxiliando no processo de memorização e, por consequência, de aprendizado.

Mas repito: a repetição não negligencia a diferenciação, a possibilidade do diferente acontecer. Meu argumento tornar-se-á plausível com a ajuda de você, leitor. Por favor, pense em suas dez últimas partidas com uma determinada cor, de brancas por exemplo. Certo. Agora analise quais foram as aberturas jogadas. Considerando que, ao menos, metade delas seguiram a mesma variante – sim, você não deve ser tão ousado ao ponto de não repetir, pelo menos três vezes, aquela danada de abertura que você viu o GM X jogando na Olimpíada, obtendo um ataque fulminante ao rei, na esperança de que o resultado seria tão eficiente quanto... Responda: a mesma abertura levou a partidas iguais?

A repetição no xadrez se assemelha mais com a função desta na arte. Li em uma dessas revistas de arquitetura que, ao decoramos um lugar simples e com poucos recursos, a repetição de objetos aparentemente sem grandes impactos em termos de ambientação tem efeito impressionante. Os exemplos chegavam a ser engraçados: uma mesa foi colocada no canto de uma sala, com um vaso de flores vermelhas miudinhas. Na outra foto, a mesma cena, só que na mesa estavam agora três vasos de flores vermelhas miudinhas. O mesmo tipo de comparação foi feito com outros objetos, e sempre o mesmo impacto visual de valorização, incrivelmente criativo.



Um exemplo de como a repetição pode ser criativa e diferente.

Eis meu ato final: a repetição representa, antes de tudo, um componente de criação. O resultado é mais eficiente que o caminho percorrido, porque de fato a repetição diz respeito a movimento, e não a imobilidade. Oras, é no movimento que a criação floresce, a criatividade se esbalda e a mente ferve.
***
Repetir o erro ensina mais do que repetir o acerto. Porque nos damos ao trabalho de explicar os erros; já nas vitórias estamos muito ocupados em contemplar nosso ego. Vale no xadrez, vale na vida. 

A tal hegemonia russa... (Ou uma interpretação sobre um universo particular)


Esse título parece até humorístico. Mas não é, eu garanto. É a mais pura verdade: os russos dominam o xadrez de tal modo que podemos dizer sim, com ou sem reticências, que eles são a hegemonia no xadrez. As reticências entram, então, para deixar no ar a dúvida, o mistério e a curiosidade não invasiva de entender porque, ou melhor, os porquês, no plural e com acento. Porque os motivos são substantivos, e eu tenho uma idéia sobre um deles.

Vejam a literatura russa. Eu tive contato com ela recentemente por duas linguagens: o teatro e o livro. Textos que tomam vida de forma diferente. Em ambas tive a oportunidade de perceber uma característica que me saltou aos olhos. Como toda arte que se preze, e que se sustenta no tempo, ela diz algo sobre o universo em que é criada, imaginada, diz sobre as pessoas que estão ali, mesmo que isso não seja verdade. A arte tem algo a dizer, e isso é inquestionável. O que ela diz é interpretação, e talvez a percepção coletiva de determinados aspectos crie o consenso, e a estética num segundo momento. Mas vejam: os russos, o povo russo, e a pessoa russa sofrem de uma frieza impressionante. Explico-me.
Eles são de natureza introspectiva, falam pouco e quando dizem, dizem muito. São breves e objetivos, diretos, e talvez por isso às vezes alcancem a crueldade quase sem querer. Notem que eu disse quase. Quase porque são irônicos, e orgulhosos disso. Sustentam uma imagem egoísta e independente, apesar do sofrimento e da dor. Apesar do comunismo e uma projeção forjada do que seja, então, esse tal "coletivo", esse eu que somos nós e que diz nada sobre ninguém.

[Cito uma passagem da peça "Não Sobre o Amor" - título sugestivo para uma obra russa, não? - que diz: "Porque quando você me diz o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, no terceiro quanto eu já estou pensando em outra coisa..."]

E por tudo isso chegam a uma profundidade admirável, compreendem a fundo e, portanto, parafraseando Pessoa, vêem muito e entendem muito o que tem visto. Observadores atentos, detalhistas do cotidiano, sugando a grandeza do pequeno e, diante do grande que são, tudo fica enorme. A dor, principalmente. E repito: sofrem. Desesperadamente. De terno e gravata. E um livro de xadrez na mão.

O xadrez entra nesse universo como ponte entre toda a profundidade e a compreensão do ser, e a projeção egoística desse conteúdo em um plano, o tabuleiro. Ali pode, e segundo os russos,deve-se ser cruel. Mas com estilo e elegância, sempre. Ali a precisão é louvada, e os detalhes somados ao entendimento da complexidade tornam-se belos, extremamente belos e univocadamente os melhores até hoje visto.

Menciono dois artistas: Kasparov e Karpov. O primeiro com sua ousadia arrebatadora, criatividade invejável e precisão assustadora. O segundo, com posições elegantes e limpas, abarrotada de detalhes sórdidos e belíssimos, calculados sem alteração das expressões faciais e olhares breves direto ao olho do oponente. Eis duas belas representações do espírito artístico russo, aplicado a uma arte, o xadrez.

Seremos nós, brasileiros do samba de bamba, capazes desse ceticismo todo diante do jogo, ou seja, da vida? Fica a questão que não sei responder. Mas perguntas valem mais que respostas em determinados momentos, como estes:


ontem

hoje
sempre

Xadrez e Poesia

LEIS DA GUERRA
-por paulo LEMINSK-
Nunca provoque.
Se sentir provocação, negocie.
Se for impossível negociar, ataque.
Mas ataque rápido, muito rápido,
com toda a força.
Não faça movimentos parciais
para obter resultados médios, assustar, intimidar.
Quando atacar, ataque para aniquilar
o mais rápido possível.
Sobretudo: não ameace, não anuncie em movimentos
ou palavras que você vai atacar.
- "Aquilo tudo era bobagem, pensou. em guerra, não há leis. Ou há?"
Alguma aplicação ao xadrez? Acredito que sim.

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