Parte da excelente entrevista de Kasparov a RÁDIO XADREZ - VIDA EM MINIATURA
Garry Kasparov – Se a minha memória não falha, eu estive aqui sete anos atrás, no hotel do outro lado da rua. Mas não foi apenas o hotel que mudou, muitas coisas mudaram nesses anos. Para começar, como vocês sabem, eu me aposentei no xadrez em 2005. Mas eu não perdi meu interesse e minha paixão pelo mágico jogo de xadrez. Agora, eu sinto que há muito mais oportunidades para divulgar no Brasil esse jogo que a gente ama. Acredito que, como alguém que representou o jogo de xadrez por tantos anos, tenho uma responsabilidade especial em relação a ele agora.
Sobre o apoio a Karpov na eleição da FIDE em 2010.
GK – Apoiar Karpov foi uma decisão difícil, mas eu acreditei que, pelo bem do jogo, nós tínhamos de deixar as diferenças de lado. Ok! Fizemos isso e não deu certo, nós perdemos a eleição. Mas não foi uma perda total, foi apenas um primeiro erro que provou que podemos fazer mais. Depois de analisar essa derrota, como todo enxadrista faz, especialmente se o resultado do jogo não foi satisfatório, acredito que temos de encontrar uma alternativa viável, que todo mundo possa ter consciência, antes de mudar o mundo do xadrez.
GK - O que é mais importante, mais nobre e mais futurista do que trazer o xadrez para um ambiente educacional? Essa ideia tem uma recepção muito calorosa em todo mundo. Nove anos atrás, eu fundei a Kasparov Chess Foundation nos Estados Unidos. A ideia era criar um ambiente para que vários entusiastas do xadrez pudessem trabalhar em locais diferentes, dentro dos Estados Unidos. Conseguimos muitos resultados positivos. Hoje, nosso programa já foi aceito em mais de 70 mil escolas norte-americanas. Além disso, nós temos feito novos torneios e damos conselhos profissionais para jovens jogadores. No ano passado, eu entendi que era muito importante passar a experiência da Kasparov Chess Foundation para outros lugares do mundo.
Sobre a Kasparov Chess Foundation no Brasil.
GK - No Brasil e na Argentina, temos o apoio do alto escalão do governo, o que faz esse empreendimento ser natural. Não estamos tentando brincar de política aqui, não estamos atrás de votos. Na verdade, procuramos países que tenham recursos para que o projeto seja desenvolvido. Vamos tentar unir outros países, mas é necessário começar no centro econômico e político da América Latina. Também fizemos isso na Europa, essa escolha é muito natural. E, no continente africano, nós teremos de começar por Johanesburgo, pois a África do Sul é o país mais poderoso economicamente do continente.
Sobre como o xadrez ajuda no ensino da Matemática.
GK - Sem sombra de dúvida, é provado que o xadrez tem um efeito muito positivo nos estudos. Há muitos testes que já foram feitos tanto nos Estados Unidos quanto em outros países. Eu podia jogar um monte de estatísticas agora em cima de você, mas acho que não é necessário. Especificamente, porque a pergunta está relacionada à Matemática, eu tenho um exemplo interessante. Houve um teste feito por uma Universidade na Alemanha em que duas classes foram escolhidas, aleatoriamente, para receber uma atividade especial. Uma das classes estava participando do programa de xadrez e a outra tinha mais aulas de Matemática. Ao final do ano, eles compararam os resultados em matemática entre as duas classes. E a classe do xadrez ganhou.
GM Giovanni Vescovi discursou no início do evento |
GK - Eu queria tomar o cuidado de avisá-los a não pensarem que o xadrez é a solução para tudo. Mas, quando você olha para os benefícios que o xadrez pode trazer para o sistema educacional, você não teria uma escolha melhor a fazer. Porque o xadrez ajuda a desenvolver uma visão geral nas crianças. Elas ficam mais concentradas, mais disciplinadas, melhoraram o pensamento lógico e também a autoestima. O xadrez desenvolve um senso de responsabilidade, porque ninguém mais além de você mesmo pode mudar o seu destino.
Sobre o xadrez como ferramenta democrática entre classes e povos.
GK - O xadrez ajuda a integrar crianças de camadas diferentes da sociedade. Neste jogo, você pode ter crianças de nacionalidades diferentes, status sociais diferentes e raças diferentes. Todas elas podem jogar juntas. E isso é um ponto crucial para muitos programas educativos hoje. Para evitar uma divisão, para não criarmos um caldeirão que exclui a todos do sistema de educação. Por último, mas não menos importante, o xadrez é barato. Você não tem, naturalmente, de construir um estádio, uma quadra, uma piscina... Você só precisa de um tabuleiro, o mais primitivo possível, e os estudos podem ser feitos pela internet. Dessa forma, o xadrez pode ser integrado muito facilmente a um programa de ensino de computação nas escolas, por exemplo. Concluindo, quando você analisa tudo isso, você vê que o xadrez é uma escolha muito fácil. Você pode considerar essa escolha como uma decisão de negócios, pois há um investimento e um retorno lógicos.
Representante da Federação Angolana de Xadrez pergunta sobre as perspectivas para a África.
GK - Como eu já falei, nós não estamos olhando apenas para o lado geográfico, mas também para a questão da língua. Tecnicamente, acho que existem sete países que falam Língua Portuguesa no mundo: Brasil, Portugal, Moçambique, Angola, Timor Leste, Guine Bissau e Macau. Na África, você tem quatro desses países, dois são grandes, dois são pequenos. Nós chegamos a visitar esses dois países pequenos e eles também têm interesse de desenvolver o xadrez. Recentemente, o Grande Mestre Ivan Sokolov visitou esses países em meu lugar e oferecemos assistência pra conseguir programas de xadrez nas escolas. Mas é claro que a gente precisa de um centro local para operações na África, que será em Johanesburgo. Entretanto, mesmo com um programa nesta cidade, nós precisamos de programas em outras línguas também, em português e em francês.
GK - Vamos entrar na França na metade de setembro. Eu vou encontrar o Ministro de Educação e Esportes e outros governantes franceses e vou começar a construir essa relação por meio do idioma entre os países. É muito claro que o conhecimento de xadrez tenha de ser produzido na língua pátria. Portanto, nossa ideia é que todas as filiais da Kasparov Chess Foundation dividam as informações, especialmente as que falam a mesma língua.
Sobre sua rotina, atividades atuais e visita ao continente africano.
GK - Em relação a minha relação pessoal com o continente africano, eu queria ter mais de 24 horas no dia para atingir todos os meus objetivos. Agora, eu estou morando em um avião. Eu tenho de estabelecer prioridades ano a ano. A minha prioridade agora é a América do sul e a Europa, mas a África está em nosso radar, queremos começar um programa lá. Provavelmente, vamos começar a trabalhar lá em 2012 ou 2013, porque é um lugar com potencial imensurável.
Sobre o surgimento de talentos em qualquer lugar do mundo.
GK - Eu acredito que o talento está espalhado por todos os lugares, em um mesmo nível. Não existe mais ou menos talento nesse ou naquele país, isso é igual em todos os países. A única razão por existem mais jogadores fortes no leste europeu e na extinta União Soviética é que havia mais crianças envolvidas com xadrez nesses lugares. Se conseguirmos inserir as crianças do Brasil ou de Angola dentro desses programas de xadrez, será apenas uma questão de tempo até aparecerem grandes jogadores nesses lugares.
Sobre como é seu trabalho na Kasparov Chess Foundation.
GK - Eu acho que a Kasparov Chess Foundation é uma contribuição significativa que eu dou ao xadrez. Porque não é apenas conversar com entusiastas do xadrez e jornalistas para promover a ideia. Por exemplo, duas vezes por ano, eu faço sessões de xadrez com alunos dos Estados Unidos para melhorar o nível de jogo deles. E também estou muito envolvido nessa atividade de encontrar patrocinadores para atividades do xadrez. Eu acho que o meu nome é importante o suficiente para atrair patrocinadores e políticos para o xadrez.
Sobre o xadrez ser incluído entre os esportes da Olimpíada tradicional.
GK - Não é que eu queira sempre trazer política para essa discussão, mas é preciso. A liderança atual da FIDE criou uma metodologia que, infelizmente, engana muitas pessoas, porque eles conseguem convencer muito bem. O fato é que a liderança atual da FIDE se afastou do Comitê Olímpico Internacional (COI). Na gestão do presidente Florencio Campomanes, em 1995, a FIDE construiu um escritório em Los Angeles para se aproximar do COI. Em 2003, a gestão nova desativou esse escritório. A FIDE não fez nenhum esforço para atrair o Comitê com alguma proposta. Anatoly Karpov poderia falar mais sobre isso porque ele era, na época, uma das pessoas envolvidas nesse projeto. É lamentável que a FIDE tenha excluído do calendário magistral do esporte as grandes cidades e capitais e todos os torneios ocorram em pequenas e desconhecidas repúblicas do leste europeu. Não há mais torneios em grandes cidades, como Londres, Barcelona, Los Angeles etc.
Sobre as disputas judiciais com a FIDE na Corte dos Esportes.
GK - No ano passado, tivemos uma disputa com a FIDE que foi resolvida na Corte Arbitral Olímpica de Esportes, em Los Angeles. Ainda temos algumas coisas a resolver lá, por exemplo, algumas federações européias ainda estão sendo investigadas. É importante entender a natureza dessa luta. A FIDE gasta a maior parte do seu dinheiro com advogados e não para lutar realmente pelo mérito do xadrez. É claro que, com essa liderança atual da FIDE, não existe nenhuma possibilidade do xadrez ser adotado como esporte olímpico. O atual presidente da FIDE devia perder menos tempo contando quantas naves espaciais aterrissam na Terra ou deixando de visitar seus amigos ditadores, como Kadafi, na Líbia, e trabalhar mais pelo bem do xadrez.
Sobre como o xadrez pode concorrer com vídeo-game e outras tecnologias.
GK - De um lado, esses jogos tecnológicos geram uma tentação para as crianças fazerem apenas isso. Mas, por outro lado, eles ajudam muito a melhorar a qualidade da educação. O que precisamos é melhorar as vantagens e diminuir as desvantagens em relação a isso. Não é uma tarefa fácil, mas é possível ser feita. Em países como o Brasil, em que há dias incríveis e ensolarados, como está lá fora hoje, é mais fácil convencê-las. Mas, geralmente, as crianças passam menos tempo ao ar livre no sol e mais tempo no computador. Se eles ficam mais tempo no computador, é nosso papel aproveitar isso, pegar essa tecnologia e mostrar nela a beleza do jogo de xadrez. Com a internet, podemos criar campeonatos escolares para países e continentes e até mesmo campeonatos mundiais. Isso não é possível de se fazer no futebol, no basquete ou no tênis.
Rádio Xadrez – Você comentou uma vez que a vitória contra o brasileiro GM Jaime Sunye Neto, em 1980, no Mundial Juvenil, foi uma de suas melhores partidas. Quase 20 anos depois, você venceu brilhantemente a Veselin Topalov, em Wijk Aan Zee, e muito se falou sobre esse jogo também. Em sua opinião, qual das duas partidas foi a melhor?
GK - Todo o ano, eu escrevo um livro de xadrez. Tenho cinco volumes dos Meus Grandes Predecessores e três volumes sobre todos os meus jogos com Karpov. No próximo mês, um novo livro será lançado. Eu trabalhei nele durante todo o verão na minha casa na Croácia e tenho de te dizer que a tarefa mais difícil em escrever esses livros é escolher os jogos. Eu joguei muitos jogos e todos eles representam alguma coisa memorável e especial para mim. Algumas partidas são muito importantes do ponto de vista do resultado, algumas são lindas, algumas são as duas coisas. Há também partidas relacionadas a datas específicas, como, por exemplo, o dia do meu aniversário. Eu joguei contra Valery Salov, em 1989, no dia do meu aniversário, e posso dizer a você que é muito difícil jogar no dia do seu aniversário. Eu tenho dificuldade de responder sua pergunta e escolher um jogo exato como o melhor da minha carreira. Se você olhar para minha carreira como um todo, você precisa pegar um jogo contra Karpov. A 16ª e 24ª partidas, de 1985, são as mais importantes. Mas, neste jogo que você citou contra Topalov, foi como um raio do céu caindo sobre mim e eu vendo o resultado de tudo na minha frente. Espero que você tenha uma chance de ler todos os meus livros para fazer a sua própria escolha.
Rádio Xadrez - Se você tivesse todas as condições necessárias para uma revanche, contra quem gostaria de jogar novamente: Vladimir Kramnik ou Deep Blue?
GK – A diferença entre esses dois matches é que a IBM desmontou Deep Blue depois que eles venceram. O computador foi desmantelado e Kramnik, embora ainda esteja jogando, está muito perto de ir pelo mesmo caminho. Mas tudo tem a ver com a hora certa e o momento certo. Eu queria ter jogado de novo contra Kramnik, em 2001, em 2002, mas não aconteceu. Eu acredito que teria vencido essa revanche. E acredito que Kramnik também pensa que eu teria vencido. De qualquer forma, eu queria ter uma chance, em algum momento da história, de jogar contra o melhor computador novamente.
Sobre regras necessárias para que um humano enfrente um computador no xadrez.
GK – Eu jogaria novamente contra a máquina se as regras concedessem ao ser humano a chance de fazer o seu melhor. Se tirarmos do computador os livros de abertura e as tablebases de finais. E também seria justo que o match acabasse assim que o humano ganhasse uma única partida. Os computadores estão à frente, não há mais dúvida disso. O que temos de descobrir é se, no auge da performance humana, ainda conseguimos vencer o computador. Um humano não pode garantir a mesma performance por seis ou oito jogos. Por sua vez, a máquina joga de forma linear, sempre na mesma performance. A máquina não vai ao banheiro, não tem problemas na família ou de saúde, não sente emoção, não sabe o placar, não sabe se está ganhando ou perdendo. Eu sei e tudo isso me influencia, então temos de dar uma chance para o humano externar toda sua energia em um único jogo. Porque, para ganhar de um computador hoje, temos de fazer um esforço que não é necessário quando jogamos com um humano. Quando dois humanos estão jogando e alguém está chegando à vitória, é praticamente automático que isso aconteça, porque a resistência de quem está perdendo sempre diminui. Pela minha própria experiência, vejo que, mesmo nos melhores jogos disputados entre humanos, há pequenos momentos de queda de rendimento. Isso é natural porque, mesmo contra o humano mais forte, você não precisa fazer todas as jogadas perfeitas. Entretanto, contra o computador, se você cometer um mínimo erro, você perde um trabalho de seis horas. Psicologicamente, é um teste muito forte para a resistência humana. Portanto, temos de criar um ambiente em que o jogador humano possa ser liberado dessa pressão e competir de igual para igual.
Sobre como trazer dinheiro para o xadrez.
GK – O xadrez é jogo, esporte, arte e ciência, mas precisa de dinheiro para subsistir. Essa é uma questão existencial, parece vinda da obra de Hamlet, de Shakespeare. Não tenho dúvida, de que o xadrez não vai atrair os mesmos patrocinadores que o futebol, basquetebol ou tênis. Ma é possível conquistar e garantir seu espaço. Mostrar o xadrez educacional e os benefícios do jogo são alguns desses caminhos para torná-lo mais popular.
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