CRÔNICA (*)
O SENHOR DO TEMPO
Figura obrigatória nas competições, o relógio de xadrez cria dificuldades adicionais para os jogadores, porém sua utilização é imprescindível. No passado, um jogador chegava a demorar horas, ou um dia todo, segundo alguns registros, para fazer até mesmo um único lance, ora por preciosismo, ora pela complexidade de uma posição, ou até mesmo como tática antiética para desestabilizar o adversário. Criou-se, por isso, necessidade de se coibir esses abusos. O relógio com dois mostradores veio para solucionar o problema. Cada jogador, com o controle específico no relógio, dispõe de um tempo convencionado para jogar a partida. Quando um jogador, ao finalizar sua jogada no tabuleiro, aciona o seu mecanismo de tempo, imediatamente o andamento de seu tempo é interrompido e o tempo passa a correr apenas para o oponente. Mas, como já é de domínio público, toda solução gera novos problemas. A propósito, jogar xadrez também é uma forma de solucionar problemas que antes, do início da partida, não existiam. Essa é a dialética das estratégias humanas. Com o relógio não foi diferente.
A pressão exercida pelo tempo exige nervos de aço dos competidores. Não é fácil, por exemplo, encontrar uma sequência de dez, vinte lances, em trinta, vinte segundos, ou menos. Alguém mais crítico poderia dizer: “Oras, o tempo é igual para os dois enxadristas, não havendo assim nenhuma injustiça”. Quanto a isso, é importante lembrar que o tempo psicológico decisivamente não corresponde ao tempo físico. Alguém já disse que o tempo é relativo. Em tempo, o tempo (sem trocadilhos) é tão relativo que para enxadristas de alto rendimento não vale a máxima: “Time is money”.
Alguns relógios, porém, principalmente os analógicos, apresentam defeitos que podem eventualmente prejudicar ou favorecer um dos competidores, quando esse problema não é percebido. No caso do problema ser notado, em competições mais formais, chama-se o árbitro e alguma medida saneadora será aplicada, com a devida correção do tempo. Existem até normas oficiais que regulamentam essas situações, ainda que todas as normas parecem ter sido inventadas para ser burladas. O gosto pelo desafio de alterar o status quo - situação atualmente estabelecida - exerce um estranho domínio sobre alguns, especialmente os revolucionários e, por outro lado, os oportunistas de plantão, estes sempre motivados pela Lei de Gérson, cuja concepção - explicação para os mais novos - é de que, na vida, a ideia é levar vantagem em tudo.
Já é tempo de retornarmos à crônica. Por muitos anos, um enxadrista paulista recorreu a uma criativa atitude desonesta. Seu estilo, numa linguagem enxadrística, era o tático. Especialista em golpes e ciladas de abertura, vencia com facilidade os menos experientes, mas era habilidoso em criar complicações táticas para os experts. Transferiu, dos tabuleiros, esse seu estilo até mesmo para vida, quando as circunstâncias lhe fossem favoráveis, ou, quando estas eram adversas, sempre buscou espertamente alguma forma de desestabilização como estratégia de alterar tudo que estivesse aparentemente definido.
Inconformado com a rigidez do controle de tempo, esse criativo e inescrupuloso enxadrista resolveu, a exemplo do titã mitológico grego, Khronos, apoderar-se do domínio do tempo. Essa foi mais uma de suas manobras táticas. Há alguns anos, inexplicavelmente confessou a um jogador, ao final de um torneio, que sempre levava em sua mochila dois relógios analógicos nas competições. Cada um deles programado técnica e especificamente para obter suas vantagens extra-tabuleiro – não sei se a expressão é a mais adequada. Com o auxílio de um hábil relojoeiro, alterou o funcionamento desses relógios para que, em um dos mecanismos, o tempo fosse mais acelerado e, no outro, um atraso calculado para a devida compensação, de tal forma que a soma dos tempos acompanhasse o tempo das demais partidas. Esse golpe seria imperceptível até mesmo aos grandes mestres. Usava um dos relógios quando jogava de brancas e outro, com as negras. Eram poucos os minutos adicionados por hora de jogo, mas inegavelmente conferiam significativa “gersiana” vantagem a esse que justifica o título desta crônica: “O Senhor do Tempo”. Não tivesse o nosso anti-herói confessado o ilícito, essa notável conduta antiética não teria gerado este texto. Admirável feito da maquiavélica engenhosidade humana.
Khronos e kairos eram as duas palavras utilizadas pelos gregos para designar o tempo. Khronos refere-se ao tempo cronológico, ou sequencial, que pode ser medido e kairos refere-se a um momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece. É bom lembrar, ainda que pese meu quase ateísmo, que em Teologia, “kairos” é "o tempo de Deus". Talvez o nosso imaginativo Senhor do Tempo desconhecesse o kairos, pois certamente pensaria numa forma de controlá-lo. Para um tático, existe um certo otimismo, porque nenhuma situação é definitivamente definida, sem redundância.
Hoje, a bem do xadrez, o Senhor do Tempo já não disputa torneios oficiais. Em sua prática nos tabuleiros desta vida, conseguiu subverter até uma famosa frase do escritor argentino Julio Cortázar, que escreveu: “Nenhum homem do mundo usa relógio. São os relógios que usam os homens do mundo”. O Senhor do Tempo, desvirtuando a proposição filosófica, usou o tempo de seus, na maioria das vezes nada semelhantes, adversários.
(*) Autoria de Roberto Telles de Souza, Árbitro Internacional de Xadrez