segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

O SENHOR DO TEMPO - uma agradável crônica do mestre da arbitragem enxadrística - ROBERTO TELLES: UM SHOW SOBRE O RELÓGIO DE XADREZ...


Crônica VIII (Autoria de Roberto Telles de Souza, Árbitro Internacional de Xadrez)
O SENHOR DO TEMPO 
Figura obrigatória nas competições, o relógio de xadrez cria dificuldades adicionais para os jogadores, porém sua utilização é imprescindível. No passado, um jogador chegava a demorar horas, ou um dia todo, segundo alguns registros, para fazer até mesmo um único lance, ora por preciosismo, ora pela complexidade de uma posição, ou até mesmo como tática antiética para desestabilizar o adversário. Criou-se, por isso, necessidade de se coibir esses abusos. O relógio com dois mostradores veio para solucionar o problema. Cada jogador, com o controle específico no relógio, dispõe de um tempo convencionado para jogar a partida. Quando um jogador, ao finalizar sua jogada no tabuleiro, aciona o seu mecanismo de tempo, imediatamente o andamento de seu tempo é interrompido e o tempo passa a correr apenas para o oponente. Mas, como já é de domínio público, toda solução gera novos problemas. A propósito, jogar xadrez também é uma forma de solucionar problemas que antes, do início da partida, não existiam. Essa é a dialética das estratégias humanas. Com o relógio não foi diferente.
A pressão exercida pelo tempo exige nervos de aço dos competidores. Não é fácil, por exemplo, encontrar uma sequência de dez, vinte lances, em menos de trinta segundos, ou menos. Alguém mais crítico poderia dizer: “Oras, o tempo é igual para os dois enxadristas, não havendo assim nenhuma injustiça”. Quanto a isso, é importante lembrar que o tempo psicológico decisivamente não corresponde ao tempo físico. Alguém já disse que o tempo é relativo. Em tempo, o tempo (sem trocadilhos) é tão relativo que para enxadristas de alto rendimento não vale a máxima: “Time is money”.
Alguns relógios, porém, principalmente os analógicos, apresentam defeitos que podem eventualmente prejudicar ou favorecer um dos competidores, quando esse problema não é percebido. No caso do problema ser notado, em competições mais formais, chama-se o árbitro e alguma medida saneadora será aplicada, com a devida correção do tempo. Existem até normas oficiais que regulamentam essas situações, ainda que todas as normas parecem ter sido inventadas para ser burladas. O gosto pelo desafio de alterar o status quo - situação atualmente estabelecida - exerce um estranho domínio sobre alguns, especialmente os revolucionários e, por outro lado, os oportunistas de plantão, estes sempre motivados pela Lei de Gérson, cuja concepção - explicação para os mais novos - é de que, na vida, a ideia é levar vantagem em tudo. 
Já é tempo de retornarmos à crônica. Por muitos anos, um enxadrista paulista recorreu a uma criativa atitude desonesta. Seu estilo, numa linguagem enxadrística, era o tático. Especialista em golpes e ciladas de abertura, vencia com facilidade os menos experientes, mas era talentoso em criar complicações táticas para os experts. Transferiu, dos tabuleiros, esse seu estilo até mesmo para vida, quando as circunstâncias lhe fossem favoráveis, ou, quando estas eram adversas, sempre buscou espertamente alguma forma de desestabilização como estratégia de alterar tudo que estivesse aparentemente definido. 
Inconformado com a rigidez do controle de tempo, esse criativo e inescrupuloso enxadrista resolveu, a exemplo do titã mitológico grego, Khronos, apoderar-se do domínio do tempo. Essa foi mais uma de suas manobras táticas. Há alguns anos, inexplicavelmente confessou a um jogador, ao final de um torneio, que sempre levava em sua mochila dois relógios analógicos nas competições. Cada um deles programado técnica e especificamente para obter suas vantagens extra-tabuleiro – não sei se a expressão é a mais adequada. Com o auxílio de um hábil relojoeiro, alterou o funcionamento desses relógios para que, em um dos mecanismos, o tempo fosse mais acelerado e, no outro, um atraso calculado para a devida compensação, de tal forma que a soma dos tempos acompanhasse o tempo das demais partidas. Esse golpe seria imperceptível até mesmo aos grandes mestres. Usava um dos relógios quando jogava de brancas e outro, com as negras. Eram poucos os minutos adicionados por hora de jogo, mas inegavelmente conferiam significativa “gersiana” vantagem a esse que justifica o título desta crônica: “O Senhor do Tempo”. Não tivesse o nosso anti-herói confessado o ilícito, essa notável conduta antiética não teria gerado este texto. Admirável feito da maquiavélica engenhosidade humana. 
Khronos e kairos eram as duas palavras utilizadas pelos gregos para designar o tempo. Khronos refere-se ao tempo cronológico, ou sequencial, que pode ser medido e kairos refere-se a um momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece. É bom lembrar, ainda que pese meu quase ateísmo, que em Teologia, “kairos” é "o tempo de Deus". Talvez o nosso imaginativo Senhor do Tempo desconhecesse o kairos, pois certamente pensaria numa forma de controlá-lo. Para um tático, existe um certo otimismo, porque nenhuma situação é definitivamente definida, sem redundância. 
Hoje, a bem do xadrez, o Senhor do Tempo já não disputa torneios oficiais. Em sua prática nos tabuleiros desta vida, conseguiu subverter até uma famosa frase do escritor argentino Julio Cortázar, que escreveu: “Nenhum homem do mundo usa relógio. São os relógios que usam os homens do mundo”. O Senhor do Tempo, desvirtuando a proposição filosófica, usou o tempo de seus, na maioria das vezes nada semelhantes, adversários.
  • José Gobbo Há gênios de toda sorte. Mestres da arte, e mestres da enganação. Por algum motivo [estranho], seu texto me faz recordar deJames Randi,
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  • José Maffei Abordagem inteligente como sempre, Roberto Telles de Souza! Mitologia, filosofia, com escrita fluente e clara que não denotam apenas conhecimento do objeto em questão, nas sobretudo da alma humana... 
    Mais um "xeque-mate" imposto por essa sua mente privilegiada, meu velho parceiro Telles... 
    Fraternal abraço!
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  • Felipe Cury Fracetto Perfeito! Jogar online é complicado. Já vi jogador fazer cada coisa contra o tempo. 
    Jogo damas no playok.com.
    Abraços, amigo!
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  • Aron Antunes Correa Sensacional texto, Telles. É claro que por motivos de descrição você não vai citar o nome deste talentoso enxadrista que subverteu a ampulheta. Será que tive o prazer de jogar contra o dono desses relógios que "corriam em tempos paralelos" ao nosso? Quem sabe com um "relógio paralelo" não dê para entrar também no "espaço paralelo". Adoraria jogar contra Capablanca em Havana, em uma tarde de muita chuva...
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  • Roberto Telles de Souza Grande Aron, em algum lugar do Universo Paralelo, todos se encontram, mas desde que sejam sem relógios adulterados, pois lá existem as tardes chuvosas, porém não tempestuosas. Valeu, meu amigo.
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  • Odair Dota Bertizola Muito prazerosa a leitura da crônica. Gostei muito da citação de Julio Cortázar. Abraço.
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  • Luiz Paulo Rouanet Caro Roberto, brilhante! Vou compartilhar, com sua licença. Grande abraço.
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  • Roberto Telles de Souza Luiz Paulo, muito me hora seu compartilhamento.
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  • Gilberto Milos Ótimo texto mas como ele confessou poderia ser citado o nome pois não sei quem é.
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  • José Augusto Faria Realmente interessante, o texto prende a atenção e a gente nem percebe o tempo passar. O mesmo que acontece durante as partidas....
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  • Thomas Polla O tempo (não) para....Que texto maravilhoso! você deu um Xeque Mate em minhas memórias, forçando-me a movê-las, Telles, Há muita poesia nisso tudo, Quero guardar esta crônica hoje (tempo presente) e sempre que houver tempo (futuro - dias que virão), irei revisitá-la e num tempo qualquer ela estará intacta, como se o tempo nunca tivesse passado, e então, quem sabe, poderemos disputar uma partida de Xadrez, sem pressa,talvez utilizando o relógio desse seu amigo... Valeu meu grande irmão, belíssima crônica !!!!!!!!!!!!!
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  • Vinícius Martinatti Bem interessante. Gostei. Parabéns, Roberto Telles de Souza. Será que o Senhor do Tempo existiu de fato ou foi uma criação? Abraços.
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  • Leandro Sarcedo Fez-me lembrar de uma música do Alceu Valença: "você quer parar o tempo? o tempo não tem parada!"
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  • Marisa Zenero Parabéns, Roberto Telles de Souza, muito bom!
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  • AI Mauro Amaral Sensacional ! 
    AI Telles, ídolo, orgulho do xadrez brasileiro !
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  • Felipe Marino kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk muito boa crônica e divertida, já aguardo as próximas hehe
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  • Rodrigo Pinheiro hehe muito legal telles, eu tb nao confio muito nao nesses relógios digitais  abraço
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  • Odinovaldo Dino Bueno Roberto Telles - sempre fazendo bem feito o que se propõe... A crônica é agradável e nos leva a viajar na imaginação, na ação deste esperto enxadrista. Sou do tempo do xadrez romântico, com mais de horas à reflexão. Assim mesmo, sempre imaginando que os meus minutos passavam mais rápidos que do oponente. Portanto,levarei esta crônica aos blogs e se desculpando às derrotas pelo tempo, tendo a como referência, já que nasceu da experiência de um árbitro que conhece a possibilidade disto acontecer. Segundo a crônica, agradabilíssima, narra o real acontecimento: logo, se houve uma vez: isto é, vazou a arte! Imagino que outros já usaram o mesmo expediente... Tocando em frente... Parabéns - discípulo da bela arte do saudoso e seu mestre Rubem Alves. Continue, Roberto Telles, nos encantando com suas apreciáveis crônicas... Aguardo a do "byé"- o oponente mais procurado para o parceiro do garotinho Fantinato, quando se abriu à escolha da parceria, já que à época o emparceiramento era elaborada à mão, sem a ajuda do computador, já que não existiam...

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